A estabilidade perturbada do mercado dos combustíveis
Nos anos anteriores ao abalo da Covid-19, o mercado de combustíveis para uso particular (da população residente em Portugal) encontrava-se numa tendência sustentada de leve crescimento. Sendo verdade que o ritmo já não era tão pujante como o dos anos imediatamente pós-crise 2008-2012, e que o crescimento vinha principalmente do diesel (a gasolina tem estagnado), o setor continuava claramente a beneficiar de um contexto nacional favorável, em que o desemprego diminuía e o rendimento das famílias aumentava. Estes fatores económicos, determinantes para este mercado, compensavam largamente tendências contrárias que se vinham afirmando, mas de forma ainda muito suave em Portugal. Falamos do crescimento de veículos elétricos, o ressurgir de antigos meios de locomoção como a bicicleta ou ainda a preferência pelos transportes públicos, incentivada pela descida do preço dos passes sociais. Neste contexto, o que se verificava era uma grande estabilidade a nível das quotas de mercado dos principais atores, sem grandes perturbações, a não ser algumas oscilações a meio da tabela.
Mas não nos deixemos enganar pelos números. Se as forças relativas do mercado se têm mantido mais ou menos inalteradas, a verdade é que não tem faltado iniciativa por parte das empresas do setor no que diz respeito a comunicação, lançamentos de parcerias, e inovação, onde têm predominado os temas dos combustíveis de melhor qualidade (e mais “verdes”), e dos descontos cruzados (uso de cartões de alimentação, clubes desportivos, bancos, etc.). Dois objetivos principais nestas ações: criar uma imagem mais amigável ambientalmente e combater a concorrência baseada apenas em preço dos postos dos hipermercados. E se estas ações podiam não estar a ter um impacto direto na batalha dos números, foram sem dúvida contribuindo para a construção da imagem das várias marcas, a famosa Brand Equity. Este dinamismo foi-se revelando tanto nos líderes de mercado, como em novos atores. A Prio, por exemplo, tem colocado muitos esforços em construir uma imagem diferenciada, que associa o low-cost ao selo de qualidade e modernidade (criação de aplicações, pagamentos automáticos), conseguindo assim chegar a uma clientela completamente distinta das concorrentes de baixo preço.
Ora, quando repentinamente chega, em 2020, uma pandemia que obriga grande parte da população a limitar drasticamente os seus movimentos, é precisamente na sua Brand Equity que se podem apoiar as empresas. A crise anterior já o tinha demonstrado e as empresas aprenderam a lição e foram trabalhando nos eixos mais importantes (reputação, propósito) nos anos seguintes à crise. O estudo BrandZ de 2020 (estudo das top 100 marcas a nível global da Kantar) demonstrou que a variação do valor das marcas com a crise pandémica de 2020 foi muito mais contida (tanto positiva como negativamente) do que na crise anterior. Isto explica-se não só por haver mais marcas tecnológicas no top 100, mas também porque as marcas presentes são mais fortes (em critérios de propósito, diferenciação e saliência) do que no passado. Ou seja, a força das marcas criou-lhes resiliência.
Essa resiliência viria a ser fundamental num setor como o dos combustíveis, fortemente impactado pela pandemia. Efetivamente, se em 2019 cada veículo português foi levado ao posto de combustível cerca de 28 vezes ao ano, em média, em 2020 não chegámos a visitar esses mesmos postos nem 20 vezes ao ano (uma diminuição de mais de 30% na regularidade de abastecimento). A este fenómeno juntou-se também uma pressão sobre os preços do mercado, que os fez baixar como nunca antes no pico da pandemia, contribuindo para uma queda abrupta do mercado em volume e em valor, que impactou todos os agentes.
Num mercado em forte contração, a concorrência torna-se mais aguerrida e é nesses momentos que acontece uma de duas coisas: ou emergem as forças e vulnerabilidades dos atores, ou, em mercados em que o produto está mais banalizado e tem características de commodity, as opções mais baratas ganham espaço. É precisamente este segundo efeito que vimos acontecer na nossa vizinha Espanha, em que as marcas brancas de combustível foram as mais resistentes à queda (sem conseguir crescer, mas caindo menos que as outras), tendo sido privilegiadas pelos utilizadores face aos líderes de mercado, numa clara busca de preço mais baixo. Pelo contrário, em Portugal, em que o mercado sempre mostrou provas de que não se comportava como uma commodity (as marcas brancas têm historicamente um peso menor do que em Espanha e os combustíveis aditivados, mais caros, têm maior importância), o que vimos acontecer foi a primeira situação. De facto, as empresas com as maiores redes de distribuição e que ofereciam propostas de valor mais fortes aos seus clientes, foram as mais resilientes. Num movimento em que cada condutor se centralizou no seu posto habitual e de maior proximidade, todas as marcas ganharam em fidelidade, tanto em Espanha como em Portugal, mas enquanto em Espanha as marcas brancas foram as que mais reforçaram essa fidelidade, em Portugal quem mais reforçou a lealdade dos compradores foram os líderes.
Neste contexto, os descontos cruzados com os retalhistas alimentares, que já eram importantes no mercado, assumiram um papel mais relevante ainda, em parte pelo mercado alimentar ter ganho alento com a pandemia (transferência de consumo de fora para dentro de casa), mas também pelas campanhas que foram sido feitas no sentido de dar destaque a estas parcerias. A dinâmica de parcerias na própria gestão das lojas de conveniência dos postos de abastecimento, primeiro entre a BP e o Pingo Doce & Go, e agora o anunciado pela Cepsa com o MyAuchan, só vem reforçar esta união entre setor alimentar e petrolífero, que tem sido uma clara aposta de fidelização para ambas as partes e que demonstrou agora ser um elemento de resistência em momentos de crise.
Neste que foi um ano atípico para todos, certos setores, como o da alimentação ou tecnologia, estiveram “no sítio certo, à hora certa” e outros foram precisamente o oposto, não podiam funcionar num contexto de restrições de movimento (combustíveis) ou de acesso (cultura). Para estes últimos, poder estar associado àqueles que foram beneficiados foi uma clara vantagem no momento da crise e poderá continuar a ser no futuro. Assegurarmos que, quando houver libertação de movimentos, temos uma atratividade reforçada e que criámos laços com os nossos clientes nos momentos piores, será o que irá garantir que temos condições para defender, o recuperar, o nosso posicionamento mais desejado no futuro.
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Marta Santos
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